Recém-divorciada, Claire decide aceitar o convite do amigo de infância para trabalhar na redação do pequeno jornal de Salina, cidade natal que não visitava há mais de uma década.
Ainda na estrada, contudo, uma notícia no rádio a pega de surpresa: um rapaz de apenas 17 anos é encontrado morto em Salina, e uma informação sobre seu estado traz a tona lembranças do assassinato do irmão de Claire. Ocorrido há mais de uma década, o caso não solucionado marcou a população local para sempre.
Determinada a obter as respostas que nunca conseguiu, Claire mergulha em uma investigação que irá forçá-la a reencontrar velhas amizades, revisitar traumas antigos e enfrentar novas ameaças.
Pathy dos Reis e
Maria Carolina Passos
nasceram em Itajaí, Santa Catarina, e se conhecem desde os tempos da escola. Maria Carolina sempre gostou de escrever e Pathy sempre gostou de ler.
Fizeram parte da equipe do Galo Frito, trabalharam juntas no programa Pathy que te Pariu e combinaram suas forças para criar este livro, o primeiro que publicam.
Siga-as nas redes sociais:
facebook.com/mariacarolinabp | twitter.com/_mariacarolina
facebook.com/PathydReis | twitter.com/pathy
Depoimentos
Contato
Quer conversar sobre o livro ou futuros projetos? Mande um e-mail para
maria [@] escarlatte [.] com
Prólogo
Agosto de 1997
“Ellie, acorda!”
O chamado na mente de Claire veio acompanhado de uma buzina que fez seu coração saltar. Mas, ao contrário da voz que ouvira, a buzina era real. Real, e se aproximava a uma velocidade alarmante.
Em questão de segundos ela se deu conta de que havia dormido na direção e encontrava-se na via contrária da US-89, rodovia que a levaria para a cidade de Salina. Seu frágil carro estava prestes a se chocar contra uma caminhão que, naquele momento, mais parecia um monstro de vinte toneladas, com grandes rodas no lugar dos pés.
Recobrando os sentidos, e com uma destreza incalculada, Claire torceu o pesado volante para a esquerda, conseguindo desviar do caminhão a alguns palmos de devorar o seu ultrapassado Toyota Camry ano 1982. Virou o volante com tanta força, que o automóvel deslizou pela rodovia, ultrapassando o acostamento e virando pelo chão de terra que margeava a estrada.
Quando finalmente parou, desnorteada, ela voltou os olhos para a estrada, em que restara apenas um rastro de poeira – levantada tanto pelo caminhão quanto por sua manobra arriscada, impetuosa. Necessária.
Pensou na sua sorte por não haver mais ninguém em nenhuma das vias naquele instante. Logo pensou na ironia de se sentir com sorte.
Lembrou-se da boz em sua cabeça lhe chamando pelo segundo nome instantes antes do ocorrido. Cogitou uma intervenção divina, talvez um anjo da guarda. Tratou de descartar o pensamento espiritual imediatamente. Fazia um bom tempo que ela não acreditava nessas baboseiras, e não seria agora que tudo mudaria.
Concluiu ter sido a própria voz da consciência dando um jeito de lhe chamar a atenção, uma vez que a estridente buzina não parecia ter surtido efeito.
O amigo de infância, Brian Smith, era o único que a chamava de Ellie. Como ela em breve o reencontraria, e passaria a chamá-lo de chefe – com o que certamente demoraria a se acostumar -, era plausível que sua mente fizesse uma espécie de associação. Era uma boa explicação. A única, convenceu-se.
Reflexiva no silêncio da vastidão estéril, no meio do nada do estado de Utah, Claire foi se recompondo. A paisagem de terra e solidão parecia uma reflexo poético de seus sentimentos. Não estava mais nervosa pelo quase acidente. Deveria estar, mas não estava. O que lhe atormentava eram os acidentes de percurso em sua vida. Uma jornalista de 33 anos que, recém-divorciada, voltava para sua cidade natal com o pretexto de trabalhar para um pequeno jornal chefiado por seu amigo. Mas o que realmente motivou seu retorno, e que a fazia sentir-se frustrada consigo mesma, era, muito além do divórcio, a necessidade de estar no lugar onde se sentia verdadeiramente em casa. Não era um bom ambiente para recomeçar, e ela sabia disso como ninguém. Não tinha mais família, e foi em Salina que a perdeu. Mesmo assim, mesmo vazio, era um lar para o qual voltar.
No momento, o único que ela possuía.
Fitando o vazio amarelo e marrom do horizonte além do para-brisa, tratou de afastar a nostalgia. Teria tempo para isso quando chegasse à sua casa. À sua antiga nova casa. Deixava para trás a cidade de Ephraim, onde havia se formado e morado por doze anos – mais de uma década de uma vida que não parecia a sua.
Ephraim não era uma cidade grande, com seus pouco mais de seis mil habitantes. Em comparação a Salina, porém, era uma metrópole, o que para Claire já não era tão positivo quanto antes. Achava que havia gente demais, estabelecimentos demais, opções demais. Sentia falta da simplicidade da pequena cidade onde nascera – ou queria acreditar nisso.
A viagem entre as duas cidades pela US-89 durava pouco mais de meia hora. Ainda assim, durante todos aqueles anos, Claire não voltou a Salina nem uma vez. Nunca foi capaz. As lembranças eram reais demais, terríveis demais para suportar de novo.
Havia deixado uma cópia das chaves de casa com Brian e telefonava vez ou outra pedindo que ele passasse por lá para dar uma arejada. De vez em quando, antes de desligar, prometia ao amigo uma visita, algo que ambos sabiam que não aconteceria.
Nunca alugou a casa, muito menos a colocou à venda – não que alguém fosse querer depois de tudo o que havia acontecido. Na verdade, evitava pensar no assunto, e se irritava quando falavam que ela estava perdendo dinheiro mantendo a casa parada. Por que, afinal, pensava nessas coisas agora.
Credo, esse susto me deixou sentimental. Chega.
Quando colocou a chave na ignição, um calafrio percorreu sua espinha. Embora achasse que não, ou simplesmente não quisesse admitir, o nervosismo com o acidente que quase sofrera ainda devia estar ali. Mas não era só isso.
Estaria ficando louca por voltar a dirigir logo depois de pegar no sono numa viagem que não levava nem uma hora, e em plena luz do dia? Estaria ficando louca por não questionar o fato de pegar no sono em tais circunstâncias?
Encarou os olhos castanhos no retrovisor interno. Não estava cansada. Foi um lapso, nada mais. Nada que a impedisse de completar os dez ou quinze minutos que faltavam até seu destino. Inspirou expirou profundamente por três vezes. Sentiu-se meio boba fazendo isso. Mesmo assim, respirou fundo novamente para então dar a partida em seu asmático Camry.
Pouco depois, ligou o rádio – uma garantia para se manter alerta -, sintonizando na estação de Salina, a KSKO 100,9 FM. Só conseguiu ouvir ruído enquanto não chegava perto o suficiente da cidade. Deixou o volume baixo, mas não desligou o aparelho.
Reconhecendo o contorno montanhoso que surgia no horizonte, soube prontamente que estava chegando e não demorou para a estação confirmar sua suspeita, trocando gradativamente o chiado pela melodia de uma canção familiar. Ao aumentar o volume, Claire logo reconheceu “Dust In The Wind”, da banda Kansas, uma de suas bandas de rock favoritas. O vocalista parecia falar diretamente à divorciada, cantando sobre todos serem poeira ao vento, vivendo momentos e sonhos que passam, uma vez que nada é para sempre.
Outros poderiam ficar deprimidos com a canção, com a realidade de que suas vidas não têm um propósito singular senão o de pertencer a um coletivo que sempre se renova, que sempre esquece o que passou, criando novas memórias que também serão esquecidas no devido tempo. Mas não Claire Ellie Price. Ela precisava daquilo. Precisava saber que a vida continuava – enquanto houvesse vida, ao menos.
Dez anos ela havia dedicado a Logan Miller. Não se sentia arrependida. Isso não. Tiveram bons anos no início. Com um sorriso de menina no rosto, recordou a insistência dele em conquistá-la, quando se conheceram no fim do segundo ano da faculdade de Claire. Lembrou-se do exato dia em que ele finalmente conseguiu, quando ela baixou a guarda, permitindo-se apaixonar, e eles…
Subitamente a música foi interrompida, assim como o devaneio romântico.
O locutor da rádio tossiu algumas vezes. Começou a desculpar-se pela pausa na programação, como que buscando um tom adequado de voz para prosseguir. A coisa toda soava tão esquisita, que Claire tentava adivinhar se ele se preparava para remediar o descuido ou anunciar o fim do mundo. Enfim, com uma formalidade afetada, ele começou: “A KSKO 100,8 FM, sua rádio de confiança, lamenta a morte do jovem James Christensen, que, com apenas 17 anos, foi vítima de um brutal assassinato, como há mais de dez anos não se via em Salina. Seu corpo foi encontrado na manhã de hoje, abandonado na encosta do morro vermelho, ao lado do cemitério municipal. Uma testemunha anônima, que verificou a cena antes de a polícia chegar, revelou que o cadáver estava com o dedão de um dos pés decepado, que foi deixado no chão mais à ente. Sobre o corpo havia um salmo rasgado da Bíblia, que dizia: Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras (Salmos 137:9).” O locutor ficou em silêncio por alguns segundos, então retomou: “Mais uma vez nossa cidade comprova aquilo que dizem: nos lugares mais pacatos acontecem as coisas mais absurdas…”
Claire desligou o rádio. Conduziu o Camry vermelho-ferrugem para o estreito acostamento e ali parou. Seu estômago dava cambalhotas e uma ânsia incontrolável irrompia de suas entranhas. Tentou respirar fundo, mas o ar não parecia ir nem vir, causando uma sensação de sufocamento, similar a um ataque de asma. Desajeitada, passou para o assento do carona. Então abriu a porta e deixou-se cair de joelhos sobre o chão de terra, causando um pequeno rasgo na calça jeans.
— Isso não pode estar acontecendo… De novo não – repetia para si mesma.
Lutava para normalizar a respiração e conter a náusea, mas a voz do radialista ecoava em sua mente e se misturava com suas próprias lembranças. Lembranças que agora a atacavam como uma violenta assombração, do tipo que não desaparece ao se fecharem os olhos. Pelo contrário. Manifesta-se com formas mais distintas, parecendo até mesmo… ganhar vida.